O Supremo não responde – Paulo Figueiredo – TV Florida USA – A sua TV Brasileira nos Estados Unidos
Foto - Montagem Revista Oeste/ Gustavo Moreno/SCO/STF
Por J. R. GUZZO-03 MAIO 2024
O STF aceita que um inquérito policial, que o ministro Moraes não tinha nenhum direito legal de abrir, continue aberto até hoje, cinco anos depois — e sem produzir uma única prova
Os sistemas de apoio do Supremo Tribunal Federal, que começam nos próprios ministros e se alastram pela porção mais subdesenvolvida da elite brasileira, costumam apresentar três respostas-padrão em sua estratégia de defesa. A primeira sustenta que o estado de choque criado no país pela conduta do STF é apenas o resultado natural do inconformismo das pessoas diante das sentenças dos ministros. Não concordam com as decisões, mesmo porque não entendem nada de Direito, e aí ficam reclamando como a torcida reclama do juiz num jogo de futebol. A segunda diz que o STF tem o direito de fazer tudo o que está fazendo porque o Brasil vive sob a ameaça permanente de um golpe para destruir a democracia. Só a vigilância eterna dos ministros nos salva, e para nos salvar o STF não pode ficar seguindo o que dizem a Constituição e as leis; para haver democracia, a liberdade e os direitos individuais têm de ser racionados. A terceira, enfim, alega que existe uma conspiração da direita mundial para assumir o governo do Brasil, ou coisa que o valha — pior que tudo, quer assumir através de eleições, pois o eleitor brasileiro não tem condição cultural de escolher o que é mais certo. É indispensável, por causa disso, manter o país num estado de sítio virtual, incluindo-se aí a “suspensão excepcional” das garantias constitucionais.
O problema dessas três respostas é que todas elas são integralmente falsas. É uma deformação séria, para começar, que o STF precise de um sistema de defesa — em democracias de verdade a corte suprema nunca precisa se defender de nada, porque cumpre os seus deveres legais e obedece ao que está escrito na Constituição. Mas o Brasil não é, já há muito tempo, uma democracia de verdade. Transformou-se em mais uma republiqueta primitiva de Terceiro Mundo, onde quem manda é uma junta de governo formada pelo sistema Lula e pelos próprios ministros do STF. Tanto faz, quando fica assim, a realidade. No caso das desculpas que o Supremo apresenta para o escândalo permanente que criou em torno de si, os fatos transformam a verdade oficial em substrato de farinha de rosca. A degradação do STF não se deve ao teor jurídico das sentenças que assina, e sim aos atos que os ministros praticam em público. O veneno não é o que decidem. É o que fazem. Aí não tem hermenêutica, nem propedêutica. O que conta, mesmo, é a capacidade de enxergar o que é certo e o que é errado, segundo a moral acessível a todo ser humano — e fazer o certo. Os ministros fazem o errado.
É perfeitamente inútil, e sobretudo hipócrita, ficar discutindo questões de Direito, a “defesa da democracia”, o “enfrentamento” das fake news, dos fascistas e do “bolsonarismo”. Mas o que se cobra dos ministros não são as suas posições diante dessas fumaças. Acham que a direita, a desinformação e o ex-presidente Bolsonaro são as piores ameaças para a humanidade no século 21? Tudo bem: que fiquem à vontade para continuar achando. O que se solicita aos magistrados supremos é que ofereçam alguma explicação coerente, racional e provida de um mínimo de honestidade para justificar as condutas apresentadas a seguir; só essas. Se forem capazes de responder com um mínimo de lógica a qualquer delas, não se fala mais do assunto, certo?
1. Qual é a explicação para o fato de três ministros do STF, ao mesmo tempo, se ausentarem do trabalho para fazer palestras sobre assuntos brasileiros, destinadas a um público de brasileiros, em português — e em Londres? Têm a obrigação de informar, também, quem lhes pagou a viagem e a estadia em hotel com diárias de R$ 6 mil o quarto. Não é, naturalmente, uma questão da sua vida privada; eles são altos servidores do Estado e têm, sim, o dever de prestar contas sobre cada tostão que recebem. No caso, a obrigação é especialmente dramática. O organizador do “evento” (é assim que eles chamam essas coisas hoje: “evento”, como se faz para o lançamento de alguma nova marca de margarina) foi um grupo privado que teve entre os seus patrocinadores financeiros um “Banco Master” que, por sua vez, tem causas em julgamento tanto no STF como no STJ — só no STJ, são 27 processos. Outro financiador foi a British American Tobacco, a antiga Souza Cruz. A questão, aí, é a simplicidade em pessoa. Pode, em qualquer tribunal de Justiça que pretenda ser respeitado, o juiz aceitar um negócio desses da parte que será julgada por ele?
O silêncio do STF a respeito do caso não pode ser levado a sério. Se os três ministros não fizeram nada de errado, por que raios se recusam a dar uma explicação tão elementar como essa? O que, exatamente, está sendo mantido em segredo? Fica pior quando os organizadores conservam em sigilo não apenas os nomes das empresas que pagaram a conta, mas também os assuntos que foram tratados na conferência — a imprensa foi proibida de entrar na sala. Fica pior ainda quando se leva em conta que os mesmos patrocinadores fecharam a coisa pelos sete lados. No “evento”, além de Gilmar Mendes, Antonio Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, socaram nada menos que cinco ministros do STJ, um ministro do TSE, dois ministros do governo Lula, o da Justiça e o advogado-geral da União, o procurador-geral da República e, para não deixar nada em aberto, o diretor-geral da Polícia Federal. Por que um esquadrão de gatos gordos desse tamanho (13, ao todo, fora a politicalha que costuma ir junto) num evento privado a 9 mil quilômetros de Brasília?
2. Pode ser normal, sim ou não, que as mulheres dos ministros do STF trabalhem em escritórios de advocacia que têm causas sob julgamento do tribunal? Não é normal em nenhuma democracia decente do mundo. Há alguma razão para o STF dizer que é, aqui no Brasil? Não é preciso saber absolutamente nada de Direito para ver que não está certo, e não pode mesmo estar certo, a mulher do juiz ter alguma ligação com o processo que o seu marido vai julgar. Se não pode ser assim em nenhum caso que exija um mínimo de imparcialidade, porque é assim com a “suprema corte” do país, como diz o presidente Lula?
O mais esquisito, no caso, é que o próprio STF decidiu, em sessão plenária, abolir as disposições do Código Civil que proibiam, como no resto do mundo civilizado, que os juízes julgassem ações nas quais tivessem interesse direto ou indireto. O que poderia haver de errado com isso? Não está claro, mas o ministro Gilmar, a quem se deve o raciocínio prevalente no STF, diz que os juízes podem, sim, julgar causas defendidas por bancas de advogados das quais fazem parte seus cônjuges, parentes e parceiros. Por quê? Para atender ao princípio da “razoabilidade”, afirma o ministro. Ou seja: o STF acha que “não é razoável” a lei impedir um magistrado brasileiro de decidir questões como essas. Parece exatamente o contrário, pela lógica comum. O razoável é que o juiz fique o mais longe possível de processos que envolvam escritórios nos quais suas relações familiares têm interesses. Mas a racionalidade do Supremo opera em outra faixa de onda. O fato objetivo, ao fim desta história toda, é que as mulheres dos ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Cristiano Zanin são advogadas. Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux são pais de advogados. Faça as contas: dá sete em 11.
3. Algum tribunal minimamente sério, no mundo democrático, aceita que um dos seus ministros tenha sido, até as vésperas de sua nomeação, o advogado pessoal do presidente da República que o nomeou para o cargo? Para tornar a situação ainda mais escura, não se trata de um presidente qualquer. É ninguém menos que Lula, o único chefe de Estado na história deste país que foi condenado, e cumpriu parte da pena, pelos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro. Até hoje não foi absolvido de nada; esse mesmo STF anulou as suas condenações sem ter apreciado qualquer fato novo ou prova relativos ao caso. Pois então: Lula colocou no Supremo o advogado Cristiano Zanin, seu defensor nos processos penais em que foi condenado.
Os aliados de Lula, de Zanin e do STF dizem que o homem foi aprovado em sabatina no Senado Federal. E daí? O Senado, do jeito que está hoje, aprovaria a nomeação de um tamanduá para o Supremo, se Lula mandasse aprovar. Isso certamente desmoraliza os senadores, mas não moraliza o STF. O advogado particular do presidente jamais é considerado, a não ser em ditaduras baratas, um nome aceitável para a instância máxima da Justiça nacional. Num regime em que o presidente recorre o tempo inteiro ao STF para anular decisões legítimas do Congresso e para proteger os seus interesses políticos, o episódio fica ainda mais chocante.
4. Qual é a justificativa técnica ou jurídica para o fato de que todos os acusados de corrupção, no presente momento, são absolvidos no STF? Isso inclui não apenas 100% dos aliados do governo, diretos ou indiretos; estes são a grande massa, mas o “liberou geral” do Supremo está salvando réus por ladroagem vindos de todas as origens. A alegação-raiz do consórcio que governa hoje o Brasil é que “não há provas”. Mas por que os ministros são tão implacáveis na exigência de provas para a roubalheira, e não exigem prova nenhuma quando condena marceneiros, barbeiros e motoboys a até 17 anos de cadeia por estarem presentes a um quebra-quebra transformado pelo próprio STF em crime de “abolição violenta do Estado de Direito”?
Outro aspecto, nessa questão, que permanece incompreensível até hoje é o seguinte: como é possível que num dos países mais corruptos do planeta, segundo a Transparência Internacional e outras organizações respeitadas, não haja nenhum corrupto na prisão? Pode haver, talvez e provisoriamente, algum ladrão de galinha; mas larápio de verdade, desses que aparecem com retrato no jornal, não há nenhum. Os ministros, fora a história da “falta de provas”, não ofereceram até agora nenhuma hipótese para esclarecer esse enigma.
5. O ministro Moraes e o STF junto com ele mantêm na prisão há oito meses, sem que haja denúncia de crime nenhum, um ex-chefe da Polícia Rodoviária Federal. No mundo das realidades isso quer dizer que a polícia do Supremo não conseguiu encontrar até agora nenhuma prova contra ele — nada, pelo menos, que pudesse satisfazer os acusadores do Ministério Público. O preso, por lei, teria de estar solto. Não existe no Direito Penal brasileiro a prisão preventiva por tempo indefinido — ou a autoridade faz a acusação formal dentro de um determinado período, ou, se não faz, solta o preso. Mas o ministro Moraes prorroga as “investigações” a cada vez que vence o prazo. Na prática, até que venha a ordem de soltura, é prisão perpétua — prisão que não tem data para terminar é prisão para sempre.
É normal, para os 11 ministros do STF, ver seu colega Dias Toffoli perdoar a Odebrecht e a J&F, rés confessas de corrupção, de pagar as multas de R$ 15 bilhões que elas mesmas tinham concordado em entregar ao Erário?
Da mesma forma, um ex-assessor de Bolsonaro está preso sob a acusação de ter ido com ele para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro de 2022 — para fugir, segundo a Polícia Federal, de investigações sobre um “golpe de Estado” de que ambos seriam suspeitos. Não se sabe que crime poderia ser esse, levando-se em conta que o próprio Bolsonaro obviamente viajou, e está solto. Também não há explicação para o fato de que nenhuma prova desse golpe apareceu até hoje, apesar de já ter passado quase um ano e meio desde que a denúncia foi posta em circulação. Mas o problema, antes disso, é que o ex-assessor provou que foi para Curitiba no dia 31 de dezembro. Não adiantou nada. Moraes diz que o documento de voo fornecido pelo preso não é suficiente e, também aí, prorrogou as investigações. É mais um fenômeno do STF. O réu não apenas tem de provar a sua inocência, quando a lei diz que é o acusador que tem de provar a culpa, mas mesmo tendo provado continua preso. A PGR pediu sua soltura ao ministro. Também não adiantou nada. O próprio Moraes, enfim, reconhece ter dúvidas sobre os fatos — e há pelo menos 2,5 mil anos se considera que em caso de dúvida o réu é quem se beneficia. Aqui é o oposto. Em caso de dúvida, mantenham o réu na cadeia.
6. O STF, e isso para deixar a lista por aqui, poderia dar alguma explicação racional para o fato de ter mantido um morador de rua preso durante 11 meses seguidos, pela suspeita de “golpe de Estado”? Não ocorreu a ninguém, durante esse tempo todo, que é materialmente impossível um mendigo derrubar o governo? Já em outra praia: é normal, para os 11 ministros do STF, ver seu colega Dias Toffoli perdoar a Odebrecht e a J&F, rés confessas de corrupção, de pagar as multas de R$ 15 bilhões que elas mesmas tinham concordado em entregar ao Erário? Ambas aceitaram pagar, para seus diretores não serem presos. Do jeito que o STF deixou as coisas, os peixes graúdos das duas empresas nem foram para a cadeia nem tiveram de pagar o que deviam. É público e provado que Alexandre de Moraes praticou censura — disfarçada em “defesa do Estado Democrático de Direito”. Isso é proibido pelo artigo 5º da Constituição.
O STF aceita que um inquérito policial, que o ministro Moraes não tinha nenhum direito legal de abrir, continue aberto até hoje, cinco anos depois — e sem produzir uma única prova. Aceita que o seu regimento interno esteja acima da Constituição. Aceita ações judiciais secretas, a violação do direito dos advogados a defender seus clientes e a supressão do processo penal previsto em lei. O que isso tudo tem a ver, enfim, com a defesa da democracia? E como seria possível fazer os juristas de Londres acreditarem que está tudo bem, se eles soubessem que o STF se comporta assim?
O STF, até agora, não deu nenhuma resposta decente para qualquer das questões apresentadas acima. Alega, unicamente, que todo o questionamento é um “ataque ao Poder Judiciário” — e não a cobrança legítima dos atos que os ministros praticam, e pelos quais são legalmente obrigados a prestar contas ao público. Talvez convença a si próprio, as classes culturais e parte da mídia que serve à polícia, a Lula e ao departamento de propaganda do governo. Mas o cidadão brasileiro comum, a cada vez que alguma pesquisa pede a sua opinião, deixa claro que respeita cada vez menos a conduta dos ministros na vida real.